Falhas ambientais e agonias impensáveis: contribuições de Winnicott na compreensão da formação das psicoses.

 Falhas ambientais e agonias impensáveis: contribuições de Winnicott na compreensão da formação das psicoses.  


                                                                                                                                    André Miolo Nunes

Terapeuta Ocupacional,

Acompanhante Terapêutico,

 Psicanalista

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Resumo:

Este artigo tem como objetivo discutir a teoria do amadurecimento humano proposta por Donald Winnicott, com ênfase no estágio de dependência absoluta e suas implicações para a estruturação psicótica. A partir de uma revisão bibliográfica da obra winnicottiana, abordam-se as três tarefas inaugurais do desenvolvimento emocional primário: integração, personalização e realização. Destaca-se a importância da provisão ambiental suficientemente boa, realizada pela mãe, para a constituição de um self integrado. Falhas nessa provisão, como adaptações insensíveis ou imprevisíveis, podem levar a distorções no desenvolvimento, resultando em organizações defensivas psicóticas. O artigo explora ainda as agonias impensáveis e suas relações com a privação ambiental, concluindo que a psicose é, em grande medida, uma doença de deficiência do ambiente. Por fim, reflete-se sobre a aplicabilidade clínica desses conceitos, especialmente em contextos de cuidado terapêutico a indivíduos com histórico de psicose.

Palavras-chave: Winnicott; Teoria do Amadurecimento; Psicose; Falhas Ambientais; Dependência Absoluta.


Abstract:

This article aims to discuss Donald Winnicott's theory of human maturation, focusing on the stage of absolute dependence and its implications for psychotic structuring. Through a bibliographic review of Winnicott's work, the three inaugural tasks of primary emotional development are addressed: integration, personalization, and realization. The importance of a sufficiently good environmental provision, provided by the mother, for the constitution of an integrated self is emphasized. Failures in this provision, such as insensitive or unpredictable adaptations, can lead to distortions in development, resulting in psychotic defensive organizations. The article also explores unthinkable agonies and their relationship with environmental deprivation, concluding that psychosis is largely a disease of environmental deficiency. Finally, the clinical applicability of these concepts is reflected upon, especially in therapeutic care contexts for individuals with a history of psychosis.

Keywords: Winnicott; Theory of Maturation; Psychosis; Environmental Failures; Absolute Dependence.

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 Introdução

A obra de Donald Winnicott destaca-se por oferecer uma compreensão profunda dos fenômenos psíquicos envolvidos no desenvolvimento humano, com ênfase na teoria do amadurecimento. Suas bases teóricas não apenas elucidam a constituição da continuidade do ser, mas também proporcionam uma leitura das origens e condições psicopatológicas ao longo do processo maturacional, considerando aspectos temporais, relacionais e ambientais.

No estágio de dependência absoluta, Winnicott identifica três tarefas inaugurais e interdependentes na relação mãe-bebê: a integração no tempo-espaço, o alojamento da psique no soma/corpo (personalização) e o desenvolvimento de relações objetais-transicionais na “produção” de realidades (realização) (DIAS, 2017). Essas tarefas são fundamentais para a estruturação psíquica do indivíduo e dependem diretamente da qualidade dos cuidados maternos.

A ênfase de Winnicott nos cuidados necessários ao bebê, durante a fase de dependência absoluta, revela-se por meio de ajustamentos ambientais e relacionais, sustentados pela noção de uma mãe suficientemente boa. Essa mãe utiliza sua capacidade de adaptação ativa e sensível para atender às necessidades do bebê, criando condições para que ele desenvolva um meio ambiente pessoal e adquira gradualmente autonomia. Falhas nessa etapa, especialmente nas tarefas inaugurais, podem resultar em uma não integração primária, abrindo caminho para futuras desintegrações da personalidade (WINNICOTT, 1952/2021).

No campo dos estudos sobre as psicoses, Winnicott ganha relevância ao distanciar-se do modelo edipiano e da teoria pulsional freudiana, propondo uma concepção alternativa para a constituição do mundo interno nos primeiros estágios da vida. Sua abordagem enfatiza a importância das relações precoces e das condições ambientais, oferecendo uma perspectiva única sobre a etiologia das psicopatologias.

O presente trabalho tem como objetivo explorar aspectos do desenvolvimento emocional durante o período de dependência absoluta, discutindo o impacto das falhas ambientais no processo de maturação e sua contribuição para a estruturação do psiquismo. Adicionalmente, busca-se refletir sobre como essas falhas podem fundamentar a organização psicótica do indivíduo.

Para tanto, foram realizados levantamentos bibliográficos e revisões da vasta obra de Winnicott, bem como de textos que abordam essa temática sob sua perspectiva teórica.

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Desenvolvimento

Nos primórdios do desenvolvimento emocional, Winnicott (1945/2021) destaca que o bebê não se constitui como uma unidade autônoma, mas sim por meio da relação entre o indivíduo e o meio ambiente. Nesse contexto, os cuidados proporcionados por uma mãe suficientemente boa são indispensáveis. Essa mãe adapta-se ativa e sensivelmente às necessidades absolutas do bebê, estabelecendo as bases para a saúde mental. Essa etapa é particularmente delicada, pois envolve tanto o potencial inato para o amadurecimento quanto as condições ambientais necessárias para seu desenvolvimento.

No estágio de dependência absoluta, o lactente não possui meios para perceber os cuidados maternos ou para controlar as ações realizadas em seu benefício. Ele está em uma posição de completa dependência, sujeito a sofrer prejuízos caso as adaptações ambientais falhem. Gradualmente, com o apoio da mãe, o bebê cria um meio ambiente pessoal subjetivado, que se transforma ao longo do processo rumo à independência. Esse ambiente inicial, marcado pela ilusão, permite ao bebê acreditar que o que ele cria está de fato presente no mundo externo. A mãe, por meio de cuidados adaptativos, nutre a redução de estados de desintegração e introduz o bebê a uma realidade compartilhada, instalando-o em um paradoxo fundamental para seu desenvolvimento.

Como afirma Winnicott (1971a/2019, p. 118):

“Na primeira infância, trata-se do mesmo tema que me referi quando falei sobre a necessidade de aceitar o paradoxo do bebê, que cria um objeto que não poderia ser criado se já não estivesse lá de antemão.”

Essa dedicação materna manifesta-se em três dimensões: holding (sustentação física), relação empática com adaptações sensíveis (sustentação psicológica) e a criação de uma “membrana protetora limitante” na superfície da pele, que viabiliza um isolamento primário. Esse isolamento, presente nos primeiros 5-6 meses de vida, permite ao bebê desenvolver, em fantasia, um mundo secreto e único. Esse espaço subjetivo expande-se posteriormente, formando o aparelho psíquico e organizando os processos mentais e de pensamento. O objeto, ainda inconsciente para o bebê, sustenta essa construção e permite momentos de fruição. Quando bem-sucedido, o ambiente é descoberto sem que o bebê perca o sentido de self.

No entanto, falhas na adaptação às necessidades do bebê podem levar a reações traumáticas. Nessas situações, o bebê perde o sentido de self e é lançado em uma experiência de não senso, caracterizada pela incapacidade de atribuir significado, nomear, organizar experiências sensoriais ou mesmo o próprio corpo. A repetição dessas falhas promove uma distorção psicótica na organização indivíduo-ambiente.

A relação com objetos, após experiências traumáticas, resulta na perda da integridade do self. Para recuperar-se, o bebê retorna ao isolamento primário, desenvolvendo organizações defensivas cada vez mais rígidas em resposta à invasão ambiental. O self passa a carecer de sentido, seja por nunca ter sido alcançado como subjetividade, seja pelo esmagamento causado pela apresentação precoce da realidade externa. Esse fracasso na provisão ambiental intensifica incoerências no bebê, que organiza defesas vigorosas contra ansiedades paranóides.

Winnicott (1959-64/2008) afirma que a etiologia da psicose está ligada a falhas no processo de maturação e integração. O fracasso ambiental nos estágios iniciais do desenvolvimento leva à estruturação de uma organização defensiva psicótica. Quando o ambiente é suficientemente bom, ele facilita o crescimento e o amadurecimento do bebê, permitindo que o potencial inato se desenvolva entre os estados de não-ser e ser. Esses estados lutam para evitar a dissolução, mantendo a continuidade do ser ao longo do processo maturacional.

A continuidade do ser, no entanto, não pode ser garantida apenas pelo indivíduo, pois depende do meio ambiente facilitador. Para Winnicott, a psicose é uma doença de deficiência do ambiente, gerada por falhas imprevisíveis na provisão materna. É crucial destacar que essas falhas não são projeções do bebê, já que ele ainda não estruturou seu ego de forma a atribuir causalidade ao ambiente. Nessa fase, o bebê não possui recursos para diferenciar o interno do externo, e só na relação com a mãe-ambiente ele adquire a capacidade de utilizar seus mecanismos mentais. Winnicott denomina essa falha de privação.

O resultado mais marcante da privação é um sentimento permanente de aniquilamento e pânico, interrompendo a continuidade do ser. Winnicott também descreve as agonias impensáveis, ligadas a múltiplas ameaças ao sentimento de existir. Essas agonias não são definidas em termos de representações mentais ou relações pulsionais e objetais, pois emergem em uma etapa tão precoce que o indivíduo ainda não é capaz de experimentar algo como interno. Elas não alcançam o estatuto de fantasia, pois não adquirem conteúdos representacionais, tornando-se inviáveis para a simbolização. Assim, atacam a mente do bebê em um estágio primário, produzindo um encontro com um mundo ainda incompreensível.

Winnicott (1963/2005) aborda o colapso como uma inversão do processo de amadurecimento, descrevendo exemplos de agonias impensáveis e suas organizações defensivas. Resumidamente, essas agonias incluem:

Agonia Impensável

Organização Defensiva

Retornar e manter-se num estado não integrado

(Situação mais imatura onde a falta de sustentação produz o caos)

Desintegração (Fragmentação), Aniquilamento e ruptura da linha de continuidade de ser

Cair para sempre

(Situações de falhas na sustentação ou manejo, com o bebê mantendo-se em alerta com sérias dificuldades de relaxamento)

Sustentar-se (Self-holding) - falso self

Perda do Conluio Psicossomático

(Sentimento de irrealidade, de não habitar o próprio corpo)

Despersonalização

Medo da Perda do senso do real, ou do contato com a realidade

(O ambiente falha na apresentação da realidade e, sem uma memória vida da mãe, o bebê mantém o investimento em si mesmo)

Exploração do narcisismo primário

Perda da capacidade de relacionar-se com objetos

(O fracasso do holding revela, na criança, a falta de confiança necessária para suportar as frustrações, podendo permanecer em estados autísticos com prejuízo na comunicação com os objetos)

Estados Autísticos/ Retraimento


É válido destacar que as agonias impensáveis, decorrentes de falhas ambientais nos estágios iniciais do desenvolvimento, estão diretamente relacionadas à ansiedade da ameaça de aniquilamento. Winnicott (1960/2008) explica que, na presença de um ambiente sustentador (holding), o “potencial herdado” transforma-se em “continuidade do ser”. No entanto, quando o ser é inviabilizado pela intrusão do ambiente, a única alternativa é reagir, o que interrompe e aniquila o ser. Como afirma o autor:

“A alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila. Ser e aniquilamento são as duas alternativas.” (Winnicott, 1960/2008, p. 47).

O ambiente, portanto, tem a função de reduzir e sustentar um mínimo de irritações, permitindo que o bebê se desenvolva de modo satisfatório, absorvendo gradualmente essas invasões em sua área de onipotência.

Contudo, nas experiências que tendem às psicoses, esse processo não ocorre adequadamente. O bebê, ainda sem noção da exterioridade, não dispõe de mecanismos de projeção e introjeção, nem desenvolveu a capacidade de se sentir real no mundo ou de perceber o mundo como real. Ele ainda não alcançou a conformação de um si mesmo, o que é agravado por sua relação de dependência absoluta com uma figura materna que falha em atender suas necessidades, seja por ausência, inadequação ou falta de adaptação ativa. Assim, as falhas ambientais comprometem a evolução da personalidade e do self do indivíduo, podendo levar a distorções significativas em sua estrutura psíquica.

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Conclusão

A relação mãe-bebê, que se desenvolve a partir de um percurso inicial, adapta-se gradualmente às novas exigências da tarefa e da relação. O caminho rumo à independência envolve a descoberta e apresentação do mundo externo, além da realidade interna. Essa transição ocorre por meio da capacidade criativa do indivíduo, que enfatiza os encontros em detrimento das rupturas, destacando a importância das provisões ambientais como fundamentais para a constituição do ser.

Falhas recorrentes nesse processo de ambientação podem resultar em reações significativas na organização psíquica do bebê, sendo as psicoses uma das expressões mais marcantes. Tais falhas manifestam-se na personalidade do indivíduo por meio de sintomas, especialmente em fases posteriores do desenvolvimento.

A clínica winnicottiana, ao abordar essas questões, exige do terapeuta uma abertura para explorar aspectos primários do desenvolvimento emocional. Isso inclui a adaptação do setting terapêutico, o manejo de fenômenos como a regressão à dependência e a flexibilização de técnicas tradicionais, conferindo à prática clínica contornos distintos da psicanálise convencional.

Por fim, gostaria de expressar minha gratidão pela oportunidade de aprofundar os estudos sobre as psicoses, tanto no contexto acadêmico quanto pessoal. Atuo como coordenador de um serviço residencial terapêutico na periferia de São Paulo, onde vivem dez moradores egressos de hospitais psiquiátricos, muitos dos quais passaram entre 15 e 40 anos internados em manicômios. Apesar de conhecermos pouco sobre suas histórias, é na convivência cotidiana que nos reconhecemos e construímos laços. Esses indivíduos carregam, além do diagnóstico de esquizofrenia, características que ecoam as descrições de Winnicott em seus textos. Estudar sua obra permitiu-me observar com maior sensibilidade os aspectos da casa, das relações de cuidado e das dinâmicas entre cuidadores e cuidados, além de trazer à tona dores existenciais que antes passavam despercebidas.

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Referências Bibliográficas
AB’SÀBER, T. Winnicott: experiência e paradoxo. 1ª ed. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
DIAS, E. O. A Teoria do Amadurecimento. 4ª ed. São Paulo: DWW Editorial, 2017.
GURFINKEL, D. Relações de objeto. 1ª ed. São Paulo: Editora Edgard Blucher, 2017.
WINNICOTT, D. W. Textos selecionados: Da pediatria à psicanálise. 1ª ed. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. São Paulo: Artmed Editora, 2008.
WINNICOTT, D. W. A Explorações Psicanalíticas. São Paulo: Artmed Editora, 2005.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. 1ª ed. São Paulo: Ubu Editora, 2019.

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